quarta-feira, 9 de setembro de 2015

linha paraíso-luz

O contra evangelho

Tudo começou com um dia ruim. Como, ele havia notado, começavam todos os seus dias usualmente. Todas as ideias da humanidade surgiram em dias ruins, segundo ele. Ou melhor, as grandes ideias da humanidade, ao menos. Ou, para ser justo, suas próprias ideias, não tão grandes assim, apareceram em dias ruins.
Era uma manhã de chuva fina e constante, daquelas incapazes de causar enchentes, mas que mesmo assim exercem uma força sobre a gravidade que deixa mais penoso levantar da cama. Mais que isso, uma dessas chuvas que servem bem pra engarrafamentos e com vento suficiente para tornar ônibus caixas lotadas e abafadas (pessoas e sua insistência em manter janelas completamente fechadas, sem uma mínima fresta!).
A mistura de suor e respiração coletiva o atingiu assim que subiu a escada do circular. Os pés encharcados complementaram seu humor. O ato seguinte seria o responsável por transbo0rdar a revelação.
À frente doa passageiros uma mulher bradava. Não vendia nada nem pedia auxílio, como era de se esperar. Ou talvez fizesse um pouco de ambos. Pregava. Passou por ela enquanto ela seguia dizendo como era preciso aceitar jesus no coração e coisas afins. Ficou no fundo da lotação, tentando se afastar o mais possível da voz. E sua mente começou a trabalhar, a contragosto, seu humor alimentado pela ladainha incessante, pensando que não queria ouvir o que a mulher tinha a dizer, que tinha tantas besteiras a fizer quanto ela, que tinha tanta capacidade de se lamuriar em voz alta quanto ela mas, em sua defesa, tinha a decência de guardar suas crenças e julgamentos para si ou, quando muito, falar a respeito delas com quem lhe permitisse. Mas ninguém desautorizava aquela senhora, alguns até anuíam, admirados com a coragem de pregar tão fervorosamente. Havia os que não pareciam concordar, mas estes preferiam tentar ignorar, abstrair ou se recolher para dentro das telas de seus celulares.
Todos esses pensamentos e observações ocorreram num átimo. Quase no mesmo instante o impulso o fez levantar e se dirigir á senhora, não de rosto fechado, nem com humor irônico, mas vestindo o sorriso mais afável que encontrara dentro de si:
_Com licença, a senhora acredita mesmo que deus acolhe aqueles que estão dispostos? - sua amabilidade era genuína, não havia motivo para ser rude com a senhora.
_Sim, meu filho, deus é infinitamente justo e bondoso e há de receber os que Nele creem – respondeu, após titubear com a inesperada interrupção, disse, aliás, não apenas a ele, mas como se lecionasse a uma classe, em voz alta.
_Certo, vou ignorar o paradoxo entre a infinita bondade divina e a necessidade de aceitar deus para ser salvo por ele – tentou ser rápido o suficiente, sem deixar tempo para a mulher intercalar algum comentário ou passagem bíblica – Você acha certo, mais, acha que é obrigação de quem crê falar aos outros sobre sua crença, mesmo que não lhe perguntem nada?
_Filho, todos somos instrumentos de Deus. Mesmo que eu esteja entre descrentes aqui, que não é o caso, se minha fala conseguir mudar o pensamento de uma pessoa, terá valido a pena. Deus não escolhe hora nem momento pra se manifestar, ele É todos os momentos.
_Deixando todos os paradoxos de lado, vou pressupor que a resposta é sim.
_Você é obviamente um descrente que torce minhas palavras pra ver nelas o que não existe. Não é obrigação de todo crente pregar o evangelho, mesmo porque isso não é nenhuma obrigação, é um ato de vontade, uma vocação, um chamado.
_E como se manifesta esse chamado?
_ A cada um de modo diferente, dentro de si cada um sabe quando recebe o chamado e SABE quando deve seguir o ofício. - a essa altura a senhora tentava se desvencilhar da conversa, ombreava com ele e buscava apoio nos demais passageiros. Mas não podia fugir do debate, uma vez que todo o coletivo estava prestando atenção e ignorar os questionamentos a teria desmoralizado por isso mesmo começou a aumentar o tom de voz na última frase.
_Então é possível que essa conversa que travei com você seja o meu chamado, não?! Talvez seja oi meu caminho para seguir.
_Isso eu não posso lhe responder, filho, é entre você e Deus. Mas Ele sempre sabe se você está sendo sincero com sua fé ou se é um fariseu. Não é possível enganar o Senhor.
_Então com licença.
Fechou os olhos e deixou a senhora de lado. Ela o olhou, em silêncio por um momento, esperando a reação. Esperou. E, como nada ocorreu, voltou-se novamente ao seu público. Assim que recitou as primeiras palavras, ele tomou a frente da senhora, abriu braços e olhos e disse com uma voz alta a qual nem ele estava acostumado:
_Senhoras e senhores presentes, obrigado pela sua atenção. Vim aqui lhes dar um testemunho pessoal e espero que dele se utilizem da maneira que for melhor a vocês. Peço que não escutem essa senhora. Não porque ela diga mentiras, não posso afirmar isso. Peço que a ignorem como um apelo ao seu bom senso e em respeito às regras de convívio social. Não contesto nenhuma das crenças dela. Sãos as crenças dela, não precisam de fundamentos ou razões, batsa serem dela, assim como tenho as minhas e cada um tem as próprias crenças. Contesto apenas o direito dela vir até aqui e incomodar meu ouvido quanto estou indo trabalhar e ainda não estou nem completamente acordado. Ora, com que autoridade ou autorização ela se sente no direito de vir aqui falar em voz alta num espaço de convívio obrigatório coletivo. Sim, ela pode alegar que deus é superior a tudo isso, tenho quase certeza que os gritos dela que tentam sobrepujar meu discurso vão nesse sentido. Mas eu também posso alegar que deus me deu o direito de não ser perturbado em meus pensamentos. E não terei igual razão? Ela pode ainda dizer que vocês a autorizaram, permitiram que ela fizesse a pregação. E tenho certeza de que muitos de vocês realmente a autorizaram, ainda que tacitamente. Mas é possível dizer que TODOS tenham dado a autorização? Nesse caso, como proteger o direito de quem não quer ser perturbado? Ela pode falar somente a quem a autorizou e relegar os demais? Nós temos a escolha de partilhar de espaços distintos nesse ônibus? E se eu quisesse fumar aqui dentro? Seria proibido, há até um cartaz expressamente proibindo. Mas a autorização da maioria poderia ser entendida como superior à proibição?
Não, não seria possível separar quem autorizou o fumo de quem não quer ter as narinas infectadas. O mesmo vale para nossos ouvidos. Assim como não sou obrigado a ouvir o gosto musical alheio, e para isso servem os fones, também não sou obrigado a ouvir quem quer impor uma opinião, ,uma conduta ou uma crença. Peço que repudiem esse autoritarismo. Peço que refutem quem se intromete em sua vida sem pedir licença. Que é exatamente o que essa senhora está fazendo, como tantos outros também fazem.
Não estou dizendo que estou certo em minhas crenças. De jeito algum. Isso seria hipócrita. Eu estou tão certo nesse momento quanto qualquer um de vocês. Ninguém é competente para dizer que o outro está errado.
Mas, peço ao menos que respeitem as minhas crenças e não venham na minha orelha dizer quais são as crenças dos outros e, ainda mais, que elas é que são as crenças corretas.
Conseguiu fazer todo esse discurso sem dar atenção à senhora que bradava atrás dele, a qual tentava tomar à frente e interrompê-lo., Ao final, virou-se para ela mais uma vez:
_Portanto, peço que não me incomode mais com suas convicções que eu não lhe incomodo com as minhas. Certo?
A mulher estacou um instante antes de começar a bradas sobre heresia, livre expressão, censura e possessão demoníaca, tudo na mesma leva. Mas o ponto del havia chegado. Desceu sem olhar pra trás, sem olhar o efeito que causou, mas sentindo que era justo acender um cigarro e cerrar os dentes. O dia de trabalho, afinal,  começava bem.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

thug life

confesso que nunca dobrei minha bicicleta dobrável. 


23 de fevereiro de 2009, recife, carnaval e manu chao

o melhor 3/4 de show que vi na vida.
falta um dia pro carnaval acabar e o ápice foi atjngido.
méritos,  quase todos, ao próprio manu chao, capaz de transformar um possível defeito - a autorreferenciação de suas músicas - em qualidade. 
justamente por usar várias vezes a mesma base, ele é capaz de se reinventar dentro de cada show.  faixas familiares se transformam em releituras, quase um cover de si mesmo. e o público é capaz de experimentar um misto de reconhecimento e  estranheza. ideal para manter a animação da plateia. 
aliás, o público é responsável por boa parte dea qualidade do show. faz toda a diferença quando, ao seu redor,  há uma imensa sinergia. porque você olha prum lado e tem alguém pulando,  olha pro outro e tem alguém extasiado. e, simples assim, temos uma catarse coletiva.
parecia woodstock. palco montado num campo de varzea.  lama. chuva torrencial. pouca gente. mesmo objetivo. aproveitar.
e manu chao teve o mesmo objetivo.  2 horas e meia de show. com vigor.  sem parar. rompendo o protocolo.  voltando duas vezes ao palco (para além do bis protocolar). batendo o microfone no peito pra fazer percussão.  chamando gogol bordello pra mais que uma jam conjunta,  pra quase um show dentro do show. pulando junto com o público.  até o fim. me fazendo pular junto mesmo que as pernas reclamassem. me dando a certeza que é desse jeito que quero envelhecer.  como manu chao e gogol bordello. pulando na lama em meio a riffs e batidas.
e a parte final dos méritos cabe ao folclore.  foram tantas dificuldades pra estar no show que apenas conseguir sair do chegar já foi uma vitória,  já deu a sensação de superação de adversidades.
estávamos jo centro,  marco zero de recife. segunda de carnaval e lotado. íamos pro polo nkva descoberta quando o céu decidiu desabar sobre nossas cabeças.  iludidos e protegidos, esperamos o temporal passar ou, ao menos,  diminuir.  não diminuiu. emprestamos sacos de lixo de um cafe, tentando nos manter secos enquanto caçávamos um táxi.  não nos manteve secos. entre tantos táxis disoutados, achamos um  livre. parecia que as coisas começavam a melhorar.  não melhoraram.  o táxi,  e todos os carros, não andavam por conta do congestionamento. pagamos uma corrida que não durou nem 25 metros e saímos na chuva, entre carros,  atravessando pontes e buscando um táxi num local que andasse. e, com custo, achamos. mas o motorista não conhecia o local do show e tivemos de parar algumas vezes pedindo informações. com tanta coisa ter perdido apenas 20 minutos de show foi um milagre.
e nos fez chegar com ganas de aproveitar.  gana que estava refletida nos demais presentes. e, te digo, aproveitamos.
e os percalços me fizeram perceber que, sim, tudo pode melhorar.  mesmo quando parece perdido.
e pode ser ingênuo. e pode ser que eu estivesse cercado de uma felicidade ilusória. mas  não consigo deixar de crer que o mundo estaria melhor se estivese cheio de gente assim. e que sempre quero ser um deles.
a capacidade de incendiar um show varia de artista pra artista. assim como cada público tem maior ou menor grau de combustão.  naquela segunda de carnaval eu diria que um piromaníaco encontrou um estoque de gasolina.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

como?

em que metrô vão embora os funcionários do metrô?

garatuja inaugural

 a vida é garrancho, letras tremidas, linhas indecifráveis.
massàs vezes aparecem uns lampejos de limpidez. a tal da plenitude.
e são nesses clarões que vou encontrando algumas certezas transformadoras, umas verdades que se fortalecem. ainda incompletas, mas sendo cercada, encurralada, quase definida.
quase.
quase.
quase lá...
.
.
.
se foi.
ainda vou falhar nesse processo. muito. e mais.
mas sigo. tentando.  e testando. e pouco atestando verdades que me caibam e me bastem. mas que já me servem,  ja´ me  são mais que suficientes, . já me alimentam o dia.
a vida e' rascunho. mas nao se deixa passar a limpo.
e, mesmo com linhas incompletas, frases desconexas e palavras descabidas, às vezes a gente encontra uns trechos que fazem sentido.


talvez  maior parte desse blogue seja apenas um desabafo confuso ao meu umbigo. reflexões espasmódicas que pouco interessam.
mas talvez algo me caiba, talvez exista algo a ser polido em meio a esse papéis soltos que a bagunça da escrivaninha me vomitou.


pelo menos, enquanto digito o que encontrei nessa balbúrdia, minha escrivaninha vira algo alem de depósito do cotidiano, e a poltrona deixa de ser cabideiro.
já não dá pra dizer que o tempo foi de todo perdido.